Sentado em um banquinho, sem encostar os pés no chão, porque ainda era muito pequeno, o estudante Alexandre de Oliveira, hoje aos 17 anos, assistia quase hipnotizado ao avô materno tocar piano. Mesmo sem escutar uma nota sequer, o menino dedicava toda a atenção àquele momento. Alexandre nasceu surdo. A família suspeita de problemas genéticos, mas nunca teve certeza. Apesar de não ouvir os sons do mundo, o rapaz escolheu seguir os caminhos do avô e aprendeu a fazer nascer música das teclas brancas e pretas.
Ontem, Alexandre recebeu conselhos valiosos de um dos maiores pianistas brasileiros, o maestro João Carlos Martins, 71 anos. “Não importa a deficiência. Você precisa ter expressão quando tocar”, ensinou o músico a Alexandre, que agradeceu pela dica com um sorriso. João Carlos Martins está em Brasília para participar, hoje, de um encontro com estudantes, no qual falará sobre o poder da música.
Martins é conhecido no mundo inteiro. Aos 28 anos, foi convidado pela então primeira-dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, para se apresentar no Carnegie Hall, em Nova York. Desde então, a carreira internacional deslanchou. Martins é considerado pela crítica mundial como um dos mais importantes intérpretes do compositor clássico alemão Johann Sebastian Bach. O pianista brasileiro conviveu com personalidades históricas das artes, como o pintor surrealista Salvador Dalí. Compartilhou experiências também com Christopher Reeve, ator que interpretou o Super-Homem e ficou tetraplégico ao cair de um cavalo.
João Carlos Martins já foi capaz de executar mais de 20 notas por segundo no piano. O maestro, porém, é famoso por um dom que vai além de seu reconhecido talento para a música clássica: a capacidade de superação. Antes de completar 30 anos, Martins acidentou-se ao jogar futebol. Caiu sobre uma pedra e teve um nervo do braço perfurado, perdendo a capacidade motora da mão direita.
Após muitos meses de cuidados médicos, João Carlos voltou a público em apresentações memoráveis, usando principalmente a mão esquerda. Pouco depois, descobriu um tumor nesse membro. Também adquiriu lesão por esforço repetitivo (LER). As duas mãos ficaram comprometidas. Ainda assim, ele não se aposentou. “Eu usava proteção de ferro nas mãos para tocar. No fim, os dedos sangravam. Parei quando percebi que a qualidade já não era a mesma”, afirmou, em entrevista ao Correio.
Violência
Na Bulgária, o músico sofreu um assalto. Recebeu golpes com uma barra de ferro na cabeça. Teve lesão cerebral. O lado direito do corpo ficou paralisado. Durante três anos, ele persistiu na carreira, mesmo com todas as dificuldades da recuperação. Ao passar por tantos desenganos, João Carlos Martins chegou a se afastar da carreira — tentou ser treinador de boxe. Mas desistir da música nunca foi uma opção possível, nem ele insistiu nisso.
Em 2004, o pianista passou a estudar regência. “Aos 64 anos, comecei uma nova vida.” Foram 900 concertos nos primeiros sete anos. Cada músico da orquestra é uma nota do piano, como João Carlos gosta de dizer. “Eu reagi com pouca maturidade nos primeiros anos nos quais tive esses problemas. Poderia ter partido para a regência mais cedo”, refletiu. “A frustração é tão grande que você tenta deletar a música da sua vida, mas eu não consegui, porque ela faz parte do meu ser. Eu sempre fui um leão no palco e continuo sendo na regência.”
Agora maestro, ele se envolveu em projetos voltados para a educação, especialmente a de deficientes físicos e mentais. O músico construiu uma trajetória voltada para divulgação de mensagens de amor e esperança a quem precisa de ânimo para seguir em frente, como o estudante Alexandre de Oliveira. Ontem, os dois se conheceram. Alexandre emocionou-se. Demonstrou nervosismo quando o maestro o convidou para tocar piano, em um encontro particular, na casa de um amigo, no Lago Norte.
Dedicação
Alexandre estuda música há três anos. Tomou a decisão de ser pianista quando herdou da avó materna um piano. “O instrumento chegou lá em casa e ele decidiu que ia tocar”, lembrou a mãe de Alexandre, a policial civil Alessandra de Oliveira, 40 anos. O jovem, recentemente, começou a tomar aulas particulares. “O professor é uruguaio. Fazer a leitura labial é complicado. Mesmo assim, Alexandre se esforça”, contou a mãe. Ele teve acompanhamento de fonoaudiólogos desde cedo e aprendeu a falar.
O adolescente ouve apenas ruídos. Graças a um implante coclear (aparelho conhecido como ouvido biônico), ele consegue captar vibrações e sons metalizados. “É possível sentir a música. Alexandre percebe com o coração quando o som ficou bonito”, observou o maestro. Alexandre gosta especialmente de música clássica. “Eu me sinto muito relaxado quando toco”, explicou o jovem.
Durante anos, Alexandre teve problemas para controlar a personalidade forte. Não aceitava as limitações que a vida lhe impôs. Com a música, está cada vez mais tranquilo. Assim como o maestro João Carlos, percebeu que pode contornar os obstáculos da natureza humana. “É uma mudança que dá para perceber facilmente. Ele amadureceu muito e a música teve um papel importante”, relatou Alessandra. Alexandre não pensa em ser pianista profissional. Contenta-se em estar na categoria amador. “Eu não ligo para a surdez. Gosto do que é diferente. A surdez não é problema nenhum. O problema é o preconceito da sociedade”, disse.
Ontem, João Carlos Martins — que já foi tema de filme e samba-enredo de escola de samba — cumpriu mais um dia de uma nobre missão: a de dividir e multiplicar emoção, fé e otimismo. “Meu conselho para qualquer pessoa é: você tem que continuar sonhando. Quando estiver deprimido, sonhe de novo. Quando você menos perceber, o seu sonho corre atrás de você.” Palavras de quem sabe o que é recomeçar a vida a cada dia.
Fonte: Correio Braziliense 06/08/2011